terça-feira, 5 de novembro de 2013

O amor acaba..............



                 


           O amor acaba
                         Paulo Mendes Campos
O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania¹ da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.
1. No sentido literário, epifania é um momento privilegiado de revelação quando ocorre um evento que “ilumina” a vida da personagem.
O amor acaba - Crônicas líricas e existenciais. 2ª- ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

Peladas.........



                    



                          Peladas 
                                              Armando Nogueira
Esta pracinha sem aquela pelada virou uma chatice completa: agora, é uma babá que passa, empurrando, sem afeto, um bebê de carrinho, é um par de velhos que troca silêncios num banco sem encosto.
E, no entanto, ainda ontem, isso aqui fervia de menino, de sol, de bola, de sonho: “Eu jogo na linha! eu sou o Lula!; no gol, eu não jogo, tô com o joelho ralado de ontem; vou ficar aqui atrás: entrou aqui, já sabe”. Uma gritaria, todo mundo se escalando, todo mundo querendo tirar o selo da bola, bendito fruto de uma suada vaquinha.
Oito de cada lado e, para não confundir, um time fica como está; o outro joga sem camisa.
Já reparei uma coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é um ser muito compreensivo que dança conforme a música: se está no Maracanã, numa decisão de título, ela rola e quiçá com um ar dramático, mantendo sempre a mesma pose adulta, esteja nos pés de Gérson ou nas mãos de um gandula.
Em compensação, num racha de menino ninguém é mais sapeca: ela corre para cá, corre para lá, quica no meio-fio, para de estalo no canteiro, lambe a canela de um, deixa-se espremer entre mil canelas, depois escapa, rolando, doida, pela calçada. Parece um bichinho.
Aqui, nessa pelada inocente é que se pode sentir a pureza de uma bola. Afinal, trata-se de uma bola profissional, uma número cinco, cheia de carimbos ilustres: “Copa Rio-Oficial”, “FIFA — Especial”. Uma bola assim, toda de branco, coberta de condecorações por todos os gomos (gomos hexagonais!), jamais seria barrada em recepção do Itamaraty.
No entanto, aí está ela, correndo para cima e para baixo, na maior farra do mundo, disputada, maltratada até, pois, de quando em quando, acertam-lhe um bico, ela sai zarolha, vendo estrelas, coitadinha.
Racha é assim mesmo: tem bico, mas tem também sem-pulo de craque como aquele do Tona, que empatou a pelada e que lava a alma de qualquer bola. Uma pintura.
Nova saída.
Entra na praça batendo palmas como quem enxota galinha no quintal. É um velho com cara de guarda-livros que, sem pedir licença, invade o universo infantil de uma pelada e vai expulsando todo mundo. Num instante, o campo está vazio, o mundo está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves feitas de camisas.
O espantalho-gente pega a bola, viva, ainda, tira do bolso um canivete e dá-lhe a primeira espetada. No segundo golpe, a bola começa a sangrar. Em cada gomo o coração de uma criança.
Os melhores da crônica brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.

Conformados e realistas ................



                                    



             Conformados e realistas           
                                                   (Tostão)
 Fernando Calazans e poucos outros jornalistas esportivos têm sido críticos e realistas sobre a qualidade e o futuro do futebol brasileiro, da Seleção e dos clubes. Penso da mesma forma. Estamos preocupados. Já a numerosa turma do oba-oba, também chamada de otimista, acha que somos muito pessimistas.
Os conformados, os que têm pouco senso crítico e também os modernistas, que são muito bem preparados cientificamente, dizem que o futebol moderno é esse aí. Temos de engoli-lo. Tocar a bola e esperar o momento certo para tentar fazer o gol virou sinônimo de lentidão. Confundem modernidade com mediocridade.
Ninguém é tão ingênuo para achar que se deve jogar hoje no estilo dos anos 60. O que queremos é ver mais qualidade. Não podemos nos contentar com um futebol medíocre, quase só de jogadas aéreas e de muita falta e correria. O encanto do futebol é outro.
Os jogadores são produzidos em série, para exportação, como uma fábrica de parafusos. Os atletas de talento são colocados na mesma linha de produção dos medíocres. Há mercado para todos. Aumentou a quantidade e diminuiu a qualidade.
Nos últimos 14 anos, a Argentina ganhou cinco mundiais sub-20 (acontecem de dois em dois anos), além de duas medalhas de ouro nas Olimpíadas. O time que derrotou o Brasil tem sete jogadores da equipe campeã mundial sub-20 em 2005.
Muitos vão dizer, com um ótimo argumento, que nesse período, o Brasil ganhou duas copas do mundo e mais um vice, enquanto a Argentina não venceu nada. A razão disso é óbvia. A Argentina não teve um único fenômeno nesses 14 anos, até chegar Messi. Já o Brasil teve Romário, Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho e Kaká. Todos os cinco ganharam o título de melhor do mundo.
Os fenômenos, em todos os esportes, dependem muito menos das condições em que são treinados. Eles não têm explicação. Mas não se pode depender tanto deles. É preciso criar boas estruturas e estratégias para formar um número maior de excelentes atletas. Esses têm diminuído no futebol brasileiro.
Muitos treinadores brasileiros conhecem tudo de esquema tático, de estatísticas, dos adversários, porém conhecem pouco as sutilezas e subjetividades. Não são bons observadores.
Quem não sabe ver não sabe nada. Eles se preocupam mais com seus esquemas táticos que com a qualidade do jogo e se os melhores jogadores estão nos lugares certos.
Há exceções. Enfim, apareceu um técnico brasileiro que colocou Carlos Alberto na posição certa, se movimentando na frente, por todos os lados, e mais perto do gol, onde pode e deve driblar. Assim ele jogou no Porto com José Mourinho. Carlos Alberto não é armador, organizador, como atuava.
Felipão estava louco para ver Robinho no Chelsea porque precisa de um atacante rápido, habilidoso, que joga melhor pelos lados e que é capaz de marcar no próprio campo e aparecer com facilidade no ataque. Robinho é um desses raros jogadores. Se Felipão fosse treinador da Seleção, certamente faria o mesmo.                          O Povo Online, 30/8/2008. Disponível em .

A escola então era risonha e franca?



            
A escola então era risonha e franca?
          Naquele ano de 1919, em Fortaleza, a nossa rua se chamava do Alagadiço: era larguíssima, uma longa sucessão de chácaras com jardim à frente, imenso quintal atrás. (...)
         Do outro lado da rua, defronte ao poste do bonde, ficava a escola pública da Dona Maria José. (...) Nela estudava o meu tio Felipe, que era quase da minha idade.(...) E eu, que chegara um mês antes do Pará, tinha loucura pra freqüentar a escola, mas ninguém consentia. Minha mãe e meu pai alimentavam idéias particulares a respeito de educação formal: desde que eu já sabia ler — aprendi sozinha pelos cinco anos — e tinha livros em casa, jornais, revistas (O Tico-Tico!), o resto ficava para mais tarde. Eu então fugia, atravessava o trilho para espiar a escola. Principalmente nos dias de sabatina, quando a meninada toda formava uma roda, cantando a tabuada, a professora com a palmatória na mão. Primeiro era em coro, seguido: “6+6, 12! 6+7, 13!” O mais difícil era a tabuada de multiplicar, principalmente nas casas de sete pra cima e entrando no salteado: “7x9, 56; 8x9, 72!” Aí a palmatória comia e os bolos eram dados pelo aluno que acertava, corrigindo o que errava. E eram aplicados na proporção do erro. Tabuada de sete a nove era fogo. O pior era um aluno grandalhão — iria pelos 14 anos — que não acertava nunca. Chegando a vez dele, a roda cantava: “8x7?” A roda esperava e ele gaguejava, ficava da cor de um pimentão e começava a chorar. Palmatória nele. Eu, que espionava da janela e já tinha aprendido a tabuada, de tanto ver sabatina, soprava de lá: “56!” Dona Maria José, se ouvia, levantava os olhos pra cima e até sorria. Mas o pobre nunca entendia o sopro. Uma vez caiu de joelhos. Mas não perdoavam: bolo nele! E no dia seguinte ele vinha pra aula de mão amarrada num pano, sempre sujo.
            As pessoas são cruéis. Menino é muito cruel. Agora me lembrei que chamavam o coitado de Zé Grandão. Nunca deu pra nada, nem pra caixeiro de bodega — não conseguia anotar direito as compras no borrador. Ele mesmo, mais tarde, nos contou isso.
          (...)
           Por isso me ficou a convicção, lá no fundo da alma: só se pode mesmo vencer na vida aprendendo tabuada de cor e salteado. Principalmente as casas altas de multiplicar.
                                                                           QUEIROZ, Rachel de. As terras ásperas – Crônicas.

Ser brotinho



                                   


                                                                    Ser brotinho
                   Paulo Mendes Campos
Ser brotinho não é viver em um píncaro azulado: é muito mais! Ser brotinho é sorrir bastante dos homens e rir interminavelmente das mulheres, rir como se o ridículo, visível ou invisível, provocasse uma tosse de riso irresistível.
Ser brotinho é não usar pintura alguma, às vezes, e ficar de cara lambida, os cabelos desarrumados como se ventasse forte, o corpo todo apagado dentro de um vestido tão de propósito sem graça, mas lançando fogo pelos olhos. Ser brotinho é lançar fogo pelos olhos.
É viver a tarde inteira, em uma atitude esquemática, a contemplar o teto, só para poder contar depois que ficou a tarde inteira olhando para cima, sem pensar em nada. É passar um dia todo descalça no apartamento da amiga comendo comida de lata e cortar o dedo. Ser brotinho é ainda possuir vitrola própria e perambular pelas ruas do bairro com um ar vagaroso, abraçada a uma porção de serelepe coloridos. É dizer a palavra feia precisamente no instante em que essa palavra se faz imprescindível e tão inteligente e superior. É também falar legal e bárbaro com um timbre tão por cima das vãs agitações humanas, uma inflexão tão certa de que tudo neste mundo passa depressa e não tem a menor importância.
Ser brotinho é poder usar óculos enormes como se fosse uma decoração, um adjetivo para o rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido das coisas que os coroas levam a sério, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto. Aguardar na paciente geladeira o momento exato de ir à forra da falsa amiga. É ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos tornam misteriosos, anotações criptográfico sobre o tributo da natureza feminina, uma cédula de dois cruzeiros com uma sentença hermética escrita a batom, toda uma biografia esparsa que pode ser atirada de súbito ao vento que passa. Ser brotinho é a inclinação do momento.
É telefonar muito, demais, revirando-se no chão como dançarina no deserto estendida no chão. É querer ser rapaz de vez em quando só para vaguear sozinha de madrugada pelas ruas da cidade. Achar muito bonito um homem muito feio; achar tão simpática uma senhora tão antipática. É fumar quase um maço de cigarros na sacada do apartamento, pensando coisas brancas, pretas, vermelhas, amarelas.
Ser brotinho é comparar o amigo do pai a um pincel de barba, e a gente vai ver está certo: o amigo do pai parece um pincel de barba. É sentir uma vontade doida de tomar banho de mar de noite e sem roupa, completamente. É ficar eufórica à vista de uma cascata. Falar inglês sem saber verbos irregulares. É ter comprado na feira um vestidinho gozado e bacanérrimo.
É ainda ser brotinho chegar a casa ensopada de chuva, úmida camélia, e dizer para a mãe que veio andando devagar para molhar-se mais. É ter saído um dia com uma rosa vermelha na mão, e todo mundo pensou com piedade que ela era uma louca varrida. É ir sempre ao cinema, mas com um jeito de quem não espera mais nada desta vida. É ter uma vez bebido dois gins, quatro uísques, cinco taças de champanhe e uma de cinza sem sentir nada, mas ter outra vez bebido só um cálice de vinho do Porto e ter dado um vexame modelo grande. É o dom de falar sobre futebol e política como se o presente fosse passado, e vice-versa.
Ser brotinho é atravessar de ponta a ponta o salão da festa com uma indiferença mortal pelas mulheres presentes e ausentes. Ter estudado ballet e desistido, apesar de tantos telefonemas de Madame Saint-Germain. Ter trazido para casa um gatinho magro que miava de fome e ter aberto uma lata de salmão para o coitado. Mas o bichinho comeu o salmão e morreu. É ficar pasmada no escuro da varanda sem contar para ninguém a miserável traição. Amanhecer chorando, anoitecer dançando. É manter o ritmo na melodia dissonante. Usar o mais caro perfume de blusa grossa e Jean-Paul. Ter horror de gente morta, ladrão dentro de casa, fantasmas e baratas. Ter compaixão de um só mendigo entre todos os outros mendigos da Terra. Permanecer apaixonada a eternidade de um mês por um violinista estrangeiro de quinta ordem. Eventualmente, ser brotinho é como se não fosse, sentindo-se quase a cair do galho, de tão amadurecida em todo o seu ser. É fazer marcação cerrada sobre a presunção incomensurável dos homens. Tomar uma pose, ora de soneto moderno, ora de minueto, sem que se dissipe a unidade essencial. É policiar parentes, amigos, mestres e mestras com um ar soga monga de quem nada vê nada ouve nada falam.
Ser brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser brotinho é detestar. Detestar o possível. É acordar ao meio-dia com uma cara horrível, comer somente e lentamente uma fruta meio verde, e ficar de pijama telefonando até a hora do jantar, e não jantar, e ir devorar um sanduíche americano na esquina, tão estranha são a vida sobre a Terra.
O cego de Ipanema. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960.